Avohai Logo

Antologia Acústica - Zuza homem de mello

Certamente o mais original personagem da geração dos músicos nordestinos que despontaram nacionalmente na década de 70, Zé Ramalho é também um dos artistas mais identificados com a juventude brasileira dos anos 90. Autor de uma obra essencialmente surrealista que funde o rock com o repente. Zé Ramalho tem um imenso poder de transmissão com sua inconfundível voz cavernosa de fascinante declamador, completamente ao vivo por sua messiânica figura esguia e macilenta. Desconsiderando as gravações regionais na extinta Rozenblit de Recife, Zé Ramalho comemora 20 anos de carreira, pois seu primeiro disco de caráter nacional é de 1977. Este valioso álbum duplo contém reinterpretações mais amadurecidas das músicas que representam a nata do que já compôs até agora. O estilo de Zé Ramalho enfoca o universo do absurdo, do apocalipse e da contradição, abrangendo ainda a emergente tendência literária de nossos tempos, o esoterismo. Suas melodias, com alguns interlúdios e refrãos sedutores, são criados sobre o mais autêntico ritmos nordestinos, frevo, forró e a mistura de ambos, que gerou sua criação mais dançante, o irresistível agalopado. Paralelamente, a obra de Zé Ramalho deriva, ora para modalidades dos cantadores e repentistas, ora para o rock, onde as figuras de Renato e Seus Blue Caps (no Brasil) e Bob Dylan exercem, cada um a seu modo, uma influência própria. Um nordestino desnorteador, Zé Ramalho provoca invariavelmente um acontecimento com suas aparições no cenário musical brasileiro. Simboliza um visionário solene e mágico, causador de fecunda sensação em duas diferentes gerações da juventude brasileira. É o verdadeiro Cavaleiro da arte nordestina. Uma antologia da obra de Zé Ramalho merece também uma análise mais detida sobre cada uma das 20 canções e sua trajetória.

Avôhai - Zuza Homem de Mello

O começo de tudo foi esta canção que abriu as portas do Sucesso nacional para Zé Ramalho. Nesta versão acústica, ela teve Harmonia alterada e foi transformada em um baião hindu, destacando a cítaras indianas, que tem uma intrigante relação de afinação com a viola dos repentistas, insistindo na mesma nota. Foi no álbum Paebirú (gravadora Mocambo, 1974), ainda em Pernambuco, que Zé, Geraldo Azevedo, Robertinho do Recife e Alceu detectaram essa ponte entre o interior do Nordeste e o Oriente. Por outro lado, existe uma saudação de origem fenícia, ADONAI, muito utilizada como mantra, onde a lógica de suporte ritmo hindu, que inclui exóticos tambores marroquinos e jarros. Zé afirma que essa foi a única música efetivamente psicografada em seus 20 anos de carreira. Sua letra longa e sem repetições surgiu de uma só vez, mal tendo o autor tempo de escrever o que lhe vinha à mente, ao mesmo tempo que uma voz lhe soprava ao ouvido AVÔHAI! AVÔHAI! (AVÔ E PAI). Há citações de martelos agalopados, de cocos, emboladas, ensinadas pelo avô que o criou, desde que ficou órfão aos 9 anos. A forma de declamação de Zé Ramalho permanece como uma marca de sua personalidade artística, um dos trunfos em que ele é imbatível.

Chão de Giz - Zuza Homem de Mello

Na gravação original desta canção, em 1977, o coro incluía Elba Ramalho, que a consagrou em definitivo com sua emocionada versão no disco Leão do Norte do ano passado. Zé optou por uma forma bem intimista com a valiosa interpretação ao violão-solo de Roberto Frejat. Essa música foi provocada por uma dessas paixões avassaladoras, platônicas e impossíveis, pois a musa inspiradora era uma mulher casada com um industrial, ainda em João Pessoa. Segundo o escritor e Jornalista José Nêumanne Pinto, paraibano e profundo conhecedor da obra de Zé Ramalho, ela poderia ter sido perfeitamente escrita por Bob Dylan, como dois primos que praticam a mesma linha musical. Pessoalmente, vejo essa canção com toque de Blues, tal grau de tensão criado pela constante busca da tônica. O ápice desta atenção se dá na melodia da palavra amiúde e mais adiante, Freud explica. Uma obra prima.

Beira-Mar - Zuza Homem de Mello

Um dos mais extensos versos das várias modalidades de cantoria de viola é o Alexandrino dos Galopes à beira-mar: deve ter 12 sílabas tônicas em cada uma das 10 linhas que compõem uma estrofe. Há ainda duas obrigatoriedades, a das rimas e a temática de se abordar mistérios e belezas do mar. Além de terminar cada estrofe com a expressão beira do mar. Tudo acaba na beira do mar, onde as forças da natureza se encontram: a água, a terra, o vento e o calor do sol. São quatro elementos que aproximam muito a obra de raízes nordestinas de Zé Ramalho à natureza e ao misticismo. O suporte de baião, à orquestra de cordas, nesta faixa que mostra a intimidade do autor com o rigor das rimas e modalidades dos versos de repentistas e violeiros, emprestam um caráter sinfônico à cultura nordestina. Ao final, o maracatu é uma referência ao ritmo pernambucano.

Vila do Sossego - Zuza Homem de Mello

Também fazia parte do seu primeiro disco e nasceu de um dos vários retornos as pessoas nos anos 70, quando tentava sua carreira no Rio com idas e vindas entre sul e Nordeste. Alugou uma casa na Praia de Manaíra, onde afixou uma placa: VILA DO SOSSEGO. A cultura hippie pairava no ar e a casa pastora ser frequentada por artistas, violeiros e cantadores, cujas noitadas e farras inspiraram uma grande produtividade de Zé Ramalho. Foi também um período de muita leitura de autores como Saint-Exupéry, que no livro Piloto de Guerra, inspirou o verso "nos aviões que vomitavam paraquedas". As palavras com final idêntico rimado são típicas nos repentes que remetem a outras duas leituras fundamentais dessa época em sua vida: as antologias poéticas de Vinícius de Moraes e Drummond. Este, como se sabe, adorava Violeiros e repentistas.

Canção Agalopada - Zuza Homem de Mello

Foi feita em outra modalidade dos repentistas, o martelo-agalopado de 10 sílabas em 10 linhas. Era a faixa de abertura do disco Terceira Lâmina, e foi baseada em versos do libreto de cordel Apocalypse, de Zé Ramalho, editado em 1977. A temática, de sua grande intimidade em vista das leituras da Bíblia, focaliza, mais do que os conceitos, a riqueza das imagens. Nesta antologia, ela é ainda mais ressaltada com clima de filme Western, obtido com as atraentes intervenções do gaitista Milton Guedes. Essa mesma música tem sido também gravada em versão bem mais pesada por grupos pop, certamente atraídos pela sua letra profética.

Anterior

Próxima